Oi, como você está?
O Lambrequim desta semana chega comemorando três anos de edições semanais ininterruptas (ou seja, exatamente 53 edições por ano!). Eis o que preparamos para a edição 159 do nosso semanário incidental:
🎉 Uma revelação de artistas que quase ninguém sabe que colaboraram com a Ditadura Militar;
🎉 Uma seleção de links para você conhecer a origem da palavra gibi, receber um incentivo para estudar & ver fotos de Marte em 4K;
🎉 E uma cisma sobre o que descobrimos nesses três anos de Lambrequim.
É isso! Compartilhe o Lambrequim com seus amigos e boa leitura!
INVESTIGAÇÕES MUSICAIS
Devemos cancelar Clara Nunes e Elis Regina porque elas colaboraram com a Ditadura Militar?
por
Nas minhas aulas de música, frequentemente digo que meus alunos devem escutar de tudo, para que possam desenvolver uma visão mais crítica do mundo e das obras que escutam.
Em dias de enxurradas musicais, com dezenas de listas, playlists e tudo o mais que se possa imaginar sobre música comercial, o que não falta, para a desgraça de Adorno, são os chamados entendidos no assunto. A música, cooptada pelo capitalismo, torna o ouvido obsoleto, ultrapassa a mera reprodutibilidade e as questões dos direitos autorais e faz com que a linguagem musical (se é que podemos chamar assim) seja “criada” por IA.
Em uma das minhas aulas, recomendei que escutassem qualquer álbum de Clara Nunes, afinal, a Mineira gravou centenas de canções e sambas de compositores que mantêm a chama da música brasileira acesa.
Decidi, então, revisitar alguns discos, quem sabe lembrar de alguma música que tivesse se escondido na memória. E sim, encontrei várias, mas não só isso, achei um disco específico, o "Clara Nunes com Vida".
Trata-se de um disco que contém faixas de músicas consagradas na voz da Guerreira, mas que receberam o acréscimo das vozes de alguns artistas, como Martinho da Vila, Chico Buarque, Nana Caymmi, Roberto Ribeiro, João Bosco, Elba Ramalho, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Alcione, Paulinho da Viola, Ângela Maria e João Nogueira. Comecei a ouvir o disco e pensei: nossa, há algo estranho aqui. Fui pesquisar e descobri o que escrevi acima. O álbum foi produzido por Paulo César Pinheiro e José Milton e lançado pela Odeon em 1995, com faixas remasterizadas, e quem conhece o “original” percebe a melhora na qualidade.
Na verdade, disse tudo isso para chegar a outro ponto. Fui buscar mais informações sobre o disco e encontrei algo que me deixou bastante perturbado, para dizer o mínimo.
É uma reportagem do “Jornal do Brasil” de 15 de fevereiro de 2018, com a manchete “Na ditadura, militares complicam artistas em documento”. Trata-se de uma suposta lista de artistas que colaboraram com um dos períodos mais sombrios da nossa história. De todos os nomes presentes, o único que realmente “me pegou”, como dizem os jovens, foi o de Clara.
Como assim? Pois é, também achei bem estranho! O próprio biógrafo da Sabiá, Vagner Fernandes, se mostra surpreso, como podemos ver em sua fala:
“A Clara Nunes gravou um samba do Chico Buarque, ‘Apesar de Você’. O governo percebeu que o conteúdo da música era ‘revolucionário’ e a EMI/ODEON obrigou-a a gravar o hino das Olimpíadas do Exército. Por causa disso ela foi muito massacrada por alguns jornais. Ela não estava muito envolvida com política”.
O livro de Vagner Fernandes oferece algumas pistas para entender essas complexidades de maneira mais detalhada. Não parece correto dizer que Clara Nunes e Elis Regina “colaboraram” com a Ditadura Militar, embora seja evidente que em algumas ocasiões tenham cedido às pressões do regime.
Vagner Fernandes relata, por exemplo, que Clara Nunes enfrentou a Ditadura ao escolher gravar “Apesar de Você” de Chico Buarque em 1971, uma canção que havia sido liberada pela censura do governo Médici e se tornou um sucesso nas rádios.
Em janeiro daquele ano, Clara lançou sua versão da música, que rapidamente se tornou emblemática. Sebastião Nery, em sua coluna, comentou que "os colegas de Clara cantavam 'Apesar de Você' como se fosse a Marselhesa". Essa popularidade da música provocou reações severas:
"Nery foi convocado pela polícia. Algumas semanas depois, a canção foi proibida. O governo baniu a música, recolheu e destruiu os discos e ainda penalizou o censor responsável. (...) Clara ficou em uma situação delicada, sendo rotulada como subversiva. O presidente da Odeon, Henry Jessen, que também era advogado, foi chamado para prestar esclarecimentos sobre ela. Foi então feito um acordo com os militares do Exército... Clara concordou em gravar o 'Hino das Olimpíadas' do Exército e participar do evento em Belo Horizonte, apresentando o hino ao público" (p. 163).
O autor adiciona que:
"...o mesmo ocorreu com Elis Regina em 1972, um ano depois [...] foi ‘convidada’ pelos militares para cantar o Hino Nacional em uma Olimpíada durante a Semana da Pátria, após declarar na Holanda que o Brasil era governado por 'gorilas'. Para poder retornar ao Brasil, ela teve que 'aceitar o convite'. Esse era o modus operandi. Os artistas eram coagidos pelo governo com ameaças. Caso contrário, enfrentariam graves consequências, como a prisão. Clara aceitou. Elis também. Para Elis, a repercussão foi ainda pior... A esquerda criticou-a severamente, e o cartunista Henfil chegou a 'enterrar' Elis duas vezes no Cemitério dos Mortos-Vivos de seu personagem Cabôco Mamadô, no jornal O Pasquim. Era para esse 'cemitério' que Henfil enviava aqueles que, segundo ele, colaboravam com o regime militar..." ( p. 165).
Portanto, não devemos apressar-nos em julgar Clara ou Elis. É plausível que elas não desejassem colaborar com os “gorilas”, mas se curvaram sob a pressão de uma autoridade opressiva que as ameaçava destruir.
Essa flexibilidade pode ser vista como uma forma de sabedoria mínima, refletindo resiliência e a perseverança necessária para continuar existindo de maneira produtiva?
Obviamente, se você é fã de Clara, essa é uma conclusão fácil… Mas que não acaba aqui.
Continua na próxima semana.
NUM UPA!
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CISMAS
A liberdade de se reconhecer transitório
por
Somente a narração de histórias eleva a vida para além de sua pura facticidade, para além de sua nudez. A narração consiste em dar ao tempo um curso significativo, um começo e um fim. Sem narração, a vida é meramente aditiva. (Byung-chul Han, em A crise da narração)
No dia 14 de abril de 2021, eu e o Menin começamos um novo projeto chamado Lambrequim. Há 159 semanas, nos lembramos do compromisso semanal de fazer chegar no seu e-mail uma nova edição da newsletter na quarta-feira, às 9h.
Como já falei em outras Cismas, o que impulsionou o início do Lambrequim foi a busca por uma alternativa para divulgar nossos projetos além das redes sociais e suas limitações de entrega, formato e espaço. Ou seja, estávamos em busca de liberdade, contato e registro — objetivos que foram todos atingidos.
No entanto, mais interessante do que pensar no que esperávamos, é falar sobre o inesperado.
Naquele tempo da pandemia
É lugar comum dizer que muita coisa mudou desde abril de 2021, já que todos vivemos uma situação de exceção chamada pandemia. Trabalhar em projetos online era meio que a única opção que havia, então não foi difícil começar e manter uma newsletter semanal — ao menos não até o final de 2022.
O cenário foi mudando em 2023, quando o mundo presencial voltou com força. Sem máscaras, restrições nem receios, como se a pandemia nunca tivesse existido.
Mesmo que o seu momento de retorno ao mundo presencial não coincida com o nosso, o ponto é que todos procuramos novas atividades online para fazer durante o isolamento — atividades que foram deixadas de lado quando retornamos ao mundo offline.
Olhando hoje, o Lambrequim começou como um projeto de pandemia: uma newsletter semanal com textos autorais que, muitas vezes, demanda tempo de pesquisa e reflexão.
Como todo mundo, o lugar em que estávamos em 2021 se dividia entre um monte de dúvidas e tentativas de sobrevivência. Mesmo assim, felizmente pudemos nos manter em casa, trabalhando em nossos projetos — e isso nos deu tempo para trabalhar novas ideias e com novas ferramentas.
Fizemos um clube de leituras distópicas, vários cursos online, editamos e publicamos e-books (nossos e de outras pessoas), produzimos vídeos e escrevemos muito. Tudo isso foi muito gratificante e nos ajudou a ter novas experiências na área da produção cultural.
Porém, todas essas experiências foram testes — testes dos quais nos orgulhamos, mas que em 2024 já não fazem mais sentido.
Testar. Escolher. Continuar.
Não é de hoje que me pergunto se devemos continuar o Lambrequim. A resposta curta (antes que alguém se assuste) é: sim. Isso porque o Lambrequim deixou de ser apenas uma forma de divulgação para se tornar um registro das nossas atividades e reflexões — um registro público e lido por várias pessoas, semana após semana.
Em outras palavras, o Lambrequim é um arquivo das nossas mudanças.
Projetos iniciados antes do Lambrequim, como a Oficina de Escrita ou o espaço físico da Têmpora Criativa, que eram prioridades e nos enchiam de questionamentos quando começamos o Lambrequim, hoje já não fazem mais sentido. Nós testamos, avaliamos o que queríamos manter e seguimos em frente.
Interessante pensar que, apesar do Lambrequim ter nascido para divulgar projetos que nem existem mais, no final das contas escrever uma newsletter semanal nos ajudou a avaliar quais projetos gostaríamos de continuar.
Mudamos (e está tudo bem)
Com o passar do tempo, tornamos o Lambrequim um espaço no qual poderíamos escrever sobre o que bem entendêssemos, sem tema nem área específica. Sem que percebêssemos, essa liberdade de escrever, toda semana, sobre o que quiséssemos e mandar para uma lista de pessoas interessadas em nos ler, foi um catalisador das nossas mudanças.
Tenho começado a perceber que uma das coisas mais sinceras que podemos fazer por nós mesmos é entender que nós mudamos. Talvez a gente se contradiga, talvez a gente se arrependa, mas nada muda o valor de sonhar, vivenciar e depois mudar de ideia. Nem sempre voltar atrás ou desistir demonstra inconsistência ou falta de caráter: por mais confusos que sejam os caminhos, só nos encontramos enquanto os percorremos.
Independente do tempo que você acompanha o nosso trabalho, nós queremos agradecer cada Lambrequim que você abriu e se envolveu lendo. Em uma época que a coisa mais fácil a fazer é mudar de aba, ter a certeza de que existem pessoas que lerão o que escrevemos nos deixa muito confortáveis e gratos. Enquanto tivermos fôlego, continuaremos testando todos os projetos que pudermos.
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